terça-feira, 10 de novembro de 2020

Provocações 3º Dia

Provocações Ato Rede 2020

3) 3º dia (16/11/2020) – Contemporaneidades, algoritmos e incêndios:

3.1) João Sérgio: Dilema das redes

             Parodiando Marx, um espectro ronda o mundo, o espectro do algoritmo. Livros como capitalismo de vigilância e o documentário da Netflix o dilema das redes abordam este assunto mostrando a preocupação de muitas pessoas com a manipulação de comportamento proporcionada pelos algoritmos. O documentário coloca duas “soluções” para o dilema: regulamentação (sem dizer exatamente o que regulamentar) e o boicote. O problema da atual preocupação com os algoritmos é que muitas pessoas parecem acreditar numa “neutralidade da tecnologia” e/ou numa inevitabilidade do algoritmo. O documentário aponta que um estudo indica que as fake news se propagam 6 vezes mais rápido que as notícias “verdadeiras”. Isso é um “acidente”? Há anos se estuda mineração de dados (de forma acrítica?) nas universidades. É necessário guardar toda esta informação? E associá-la a quem produziu? Manipulação de comportamento existe há muito tempo com o nome bonito de marketing. Velocidade, escala e meio não necessariamente alteram o fenômeno. Alguma regulamentação de marketing foi criada ao longo do tempo (e tem sido destruída nos últimos anos no afã desregulamentatório neoliberal). Não está na hora de uma regulamentação mais profunda e radical?

 

 3.2) André Morelli: Queimadas

             Diante dos incêndios na Amazônia, me lembrei deste trecho da minha qualificação de doutorado (não foi para a versão final), sobre o incêndio que queimou Roraima em 1998. O texto foi escrito em 2016.

            Pelas bandas do rio Uraricoeras, onde o mato virgem fez retinta nossa gente, o medo dos mistérios da noite dominou de tal forma os corações que as mentes se turvaram tanto quanto nosso herói. E se forçaram a esbranquiçar, com tanta força, que a falta de sucesso deixou atordoadas todas as tribos, desde as Ianomâmis até as Caiapós, os Tapanhumas e até a gente branca que desceu pelo rio Branco tantas vezes que tiveram que ir a Madri para se resolver.

            Ali o silêncio das águas se rompeu, e o barulho manso das aves tornou-se o grito louco dos macacos e de todos os bichos numa fuga alucinante. Estes sons eram menores se comparados ao leve e terrível trepidar do fogo. E este não foi aceso para aquecer ou para espantar certos bichos, como por tanto tempo se poderia esperar naquelas paragens. Na verdade, ninguém sabe ao certo se ele resolveu se acender para limpar a mata milenar e, em resposta, resolver limpar todas as convicções; ou se foi o caso de um tal El Niño, uma coisa que ninguém vê, só os satélites (que também ninguém vê). Seja qual for o caso, aqui começa um pequeno “causo” de desdobramentos inesperados e, por isso, reveladores.

            Foi na região perto do célebre rio Uraricoeras, que virou Roraima por boniteza do homem branco, que em março de 1998 ocorreu o maior incêndio que se tem conhecimento da história da Amazônia, que tem a inconveniência de não ser bem conhecida, é verdade. Ainda que a notícia tenha aparecido para os modernos do sul do país só em 5 de março de 1998 (MACHADO, 1998a), os habitantes da região já relatavam o imenso incêndio pelo menos duas semanas antes, apontando para sua dimensão trágica. E tragédias é o que não faltam para os moradores da região. As queimadas atingiram áreas de tribos indígenas e colonos de assentamentos miseráveis, além de uma remota e isolada estação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conforme relataram moradores locais (MACHADO, 1998). Mas mesmo no isolamento remoto desta área de Roraima, já se ouviam fragmentos de vozes modernas: “Essa situação é consequência do fenômeno El Niño”, disse Valdir Ribeiro da Cruz, diretor de fiscalização do IBAMA local.

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Por se tratar da Amazônia, a mídia estrangeira também se interessou. O célebre jornal francês Le Monde dedicou meia página ao assunto em uma de suas edições (COMPARATO, 1998). Dentre os estrangeiros, também houve interesse da ONU (Organização das Nações Unidas), por meio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que enviou seus especialistas em queimadas e controle de incêndio (LAMBERT, 1998); e do BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que previu mais incêndios e ajudou a organizar doações de diferentes países, como Alemanha e Japão, destinando recursos para a urgente causa local, mas que também era global (FIGUEIREDO, 1998). Não se pode esquecer dos povos tradicionais da região que, diante do incêndio, da sede, da fome e da falta de saída para o problema, acreditou estar diante do fim do mundo (FOLHA, 1998b), ainda que esta seja uma informação de terceira mão, como acontece quase sempre com tais populações.

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Já no final de março de 1998, após mais de 20 dias de incêndio, o governo brasileiro aceitou que o fogo estava completamente fora de controle (FRANÇA, 1998) e que os focos de incêndio aumentavam cada vez mais (LOZANO, 1998). O ciclo de acusações explodiu no fim de março, denunciando tanto o governo por incapacidade de articular as diferentes ações e por não ter um plano claro e eficiente (FOLHA, 1998d) quanto políticos, produtores rurais e, numa das maravilhosas agências macunaímicas tupiniquins, também São Pedro. Neste ponto, indígenas, pesquisadores, moradores, coronéis dos bombeiros, do exército, políticos, especialistas, talvez até São Pedro, enfim, todos concordavam: apenas chuvas poderiam resolver o problema (SCHIVARTCHE, 1998).

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Foi quando um ator esquecido e colocado como inútil ou meramente problemático por quase todos os outros atores resolveu agir: os indígenas. Um funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio), cacique Mengaron, sugeriu à instituição a “importação” de membros de comunidades tradicionais do Mato Grosso para desempenhar uma “dança da chuva”, com o objetivo de debelar as chamas (MACHADO, 1998c).

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Mas fazer chuva não é especialidade somente dos índios. No mesmo dia o exército anunciou que traria técnicos e especialistas da Fundação Cearense de Meteorologia que seriam capazes de bombardear as nuvens de modo que chovesse (MACHADO, 1998c). A coincidência de datas de ambos os anúncios poderia fazer crer que estava inaugurada uma disputa de eficiência entre as diferentes técnicas.

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Em primeiro de abril de 1998, o que parecia mentira foi publicado nos jornais: a pajelança funcionara, a chuva caíra, e o incêndio fora reduzido a cinzas (LOZANO, MACHADO, 1998). Parecia uma confirmação da velha máxima de que Deus, ou Tupã, ou Nhandejara, são brasileiros. A notícia foi dada estabelecendo cientificamente a cronologia dos fatos: veio a “dança”, caiu a chuva no outro dia, mas “a mudança de clima já era prevista pelo serviço de meteorologia” (LOZANO, MACHADO, 1998), num belo amálgama de crença, ciência e informação [perdoem-me por este trecho]. Para desespero dos modernos, o fato é que a chuva caiu.


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