Provocações Ato Rede 2020
3) 3º dia (16/11/2020) – Contemporaneidades,
algoritmos e incêndios:
3.1)
João Sérgio: Dilema das redes
Parodiando
Marx, um espectro ronda o mundo, o espectro do algoritmo. Livros como
capitalismo de vigilância e o documentário da Netflix o dilema das redes
abordam este assunto mostrando a preocupação de muitas pessoas com a
manipulação de comportamento proporcionada pelos algoritmos. O documentário
coloca duas “soluções” para o dilema: regulamentação (sem dizer exatamente o
que regulamentar) e o boicote. O problema da atual preocupação com os
algoritmos é que muitas pessoas parecem acreditar numa “neutralidade da
tecnologia” e/ou numa inevitabilidade do algoritmo. O documentário aponta que
um estudo indica que as fake news se propagam 6 vezes mais rápido que as
notícias “verdadeiras”. Isso é um “acidente”? Há anos se estuda mineração de
dados (de forma acrítica?) nas universidades. É necessário guardar toda esta
informação? E associá-la a quem produziu? Manipulação de comportamento existe
há muito tempo com o nome bonito de marketing. Velocidade, escala e meio
não necessariamente alteram o fenômeno. Alguma regulamentação de marketing
foi criada ao longo do tempo (e tem sido destruída nos últimos anos no afã
desregulamentatório neoliberal). Não está na hora de uma regulamentação mais
profunda e radical?
3.2)
André Morelli: Queimadas
Diante
dos incêndios na Amazônia, me lembrei deste trecho da minha qualificação de
doutorado (não foi para a versão final), sobre o incêndio que queimou Roraima
em 1998. O texto foi escrito em 2016.
Pelas
bandas do rio Uraricoeras, onde o mato virgem fez retinta nossa gente, o medo
dos mistérios da noite dominou de tal forma os corações que as mentes se
turvaram tanto quanto nosso herói. E se forçaram a esbranquiçar, com tanta
força, que a falta de sucesso deixou atordoadas todas as tribos, desde as
Ianomâmis até as Caiapós, os Tapanhumas e até a gente branca que desceu pelo
rio Branco tantas vezes que tiveram que ir a Madri para se resolver.
Ali
o silêncio das águas se rompeu, e o barulho manso das aves tornou-se o grito
louco dos macacos e de todos os bichos numa fuga alucinante. Estes sons eram
menores se comparados ao leve e terrível trepidar do fogo. E este não foi aceso
para aquecer ou para espantar certos bichos, como por tanto tempo se poderia
esperar naquelas paragens. Na verdade, ninguém sabe ao certo se ele resolveu se
acender para limpar a mata milenar e, em resposta, resolver limpar todas as
convicções; ou se foi o caso de um tal El Niño, uma coisa que ninguém
vê, só os satélites (que também ninguém vê). Seja qual for o caso, aqui começa
um pequeno “causo” de desdobramentos inesperados e, por isso, reveladores.
Foi
na região perto do célebre rio Uraricoeras, que virou Roraima por boniteza do
homem branco, que em março de 1998 ocorreu o maior incêndio que se tem
conhecimento da história da Amazônia, que tem a inconveniência de não ser bem
conhecida, é verdade. Ainda que a notícia tenha aparecido para os modernos do
sul do país só em 5 de março de 1998 (MACHADO, 1998a), os habitantes da região
já relatavam o imenso incêndio pelo menos duas semanas antes, apontando para
sua dimensão trágica. E tragédias é o que não faltam para os moradores da
região. As queimadas atingiram áreas de tribos indígenas e colonos de
assentamentos miseráveis, além de uma remota e isolada estação do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conforme relataram moradores
locais (MACHADO, 1998). Mas mesmo no isolamento remoto desta área de Roraima,
já se ouviam fragmentos de vozes modernas: “Essa situação é consequência do
fenômeno El Niño”, disse Valdir Ribeiro da Cruz, diretor de fiscalização
do IBAMA local.
[...]
Por se tratar da Amazônia, a mídia
estrangeira também se interessou. O célebre jornal francês Le Monde
dedicou meia página ao assunto em uma de suas edições (COMPARATO, 1998). Dentre
os estrangeiros, também houve interesse da ONU (Organização das Nações Unidas),
por meio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que
enviou seus especialistas em queimadas e controle de incêndio (LAMBERT, 1998);
e do BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que previu mais incêndios
e ajudou a organizar doações de diferentes países, como Alemanha e Japão,
destinando recursos para a urgente causa local, mas que também era global
(FIGUEIREDO, 1998). Não se pode esquecer dos povos tradicionais da região que,
diante do incêndio, da sede, da fome e da falta de saída para o problema,
acreditou estar diante do fim do mundo (FOLHA, 1998b), ainda que esta seja uma
informação de terceira mão, como acontece quase sempre com tais populações.
[...]
Já no final de março de 1998, após mais
de 20 dias de incêndio, o governo brasileiro aceitou que o fogo estava
completamente fora de controle (FRANÇA, 1998) e que os focos de incêndio
aumentavam cada vez mais (LOZANO, 1998). O ciclo de acusações explodiu no fim
de março, denunciando tanto o governo por incapacidade de articular as
diferentes ações e por não ter um plano claro e eficiente (FOLHA, 1998d) quanto
políticos, produtores rurais e, numa das maravilhosas agências macunaímicas
tupiniquins, também São Pedro. Neste ponto, indígenas, pesquisadores, moradores,
coronéis dos bombeiros, do exército, políticos, especialistas, talvez até São
Pedro, enfim, todos concordavam: apenas chuvas poderiam resolver o problema
(SCHIVARTCHE, 1998).
[...]
Foi quando um ator esquecido e colocado
como inútil ou meramente problemático por quase todos os outros atores resolveu
agir: os indígenas. Um funcionário da Funai (Fundação Nacional do Índio),
cacique Mengaron, sugeriu à instituição a “importação” de membros de
comunidades tradicionais do Mato Grosso para desempenhar uma “dança da chuva”,
com o objetivo de debelar as chamas (MACHADO, 1998c).
[...]
Mas fazer chuva não é especialidade
somente dos índios. No mesmo dia o exército anunciou que traria técnicos e
especialistas da Fundação Cearense de Meteorologia que seriam capazes de
bombardear as nuvens de modo que chovesse (MACHADO, 1998c). A coincidência de
datas de ambos os anúncios poderia fazer crer que estava inaugurada uma disputa
de eficiência entre as diferentes técnicas.
[...]
Em primeiro de abril de 1998, o que parecia
mentira foi publicado nos jornais: a pajelança funcionara, a chuva caíra, e o
incêndio fora reduzido a cinzas (LOZANO, MACHADO, 1998). Parecia uma
confirmação da velha máxima de que Deus, ou Tupã, ou Nhandejara, são
brasileiros. A notícia foi dada estabelecendo cientificamente a cronologia dos
fatos: veio a “dança”, caiu a chuva no outro dia, mas “a mudança de clima já
era prevista pelo serviço de meteorologia” (LOZANO, MACHADO, 1998), num belo
amálgama de crença, ciência e informação [perdoem-me por este trecho]. Para
desespero dos modernos, o fato é que a chuva caiu.